Nesta entrevista, Thandiwe Mawakana apresenta a Terapia Kula, seu trabalho de psicologia para população negra totalmente baseado na cosmovisão africana.

Costumeiramente, por aqui, pedimos sempre que as pessoas entrevistadas se apresentem, contem um pouquinho de suas trajetórias, suas credenciais e afins. Por gentileza, Thandiwe Mawakana, apresente-se brevemente, conte também como foi o encontro com a Terapia Kula.


Bom, meu nome de registro é Jéssica, mas o nome africano que escolhi é Thandiwe. Sou psicóloga Africana desde 2019 e atuo com atendimento de pessoas negras. Meu encontro com a terapia Kula partiu e parte de todos os atendimentos que fiz e faço até hoje. Kula significa amadurecer em Kikongo, e o amadurecimento numa perspectiva africana é um dos focos da nossa abordagem.

Como você definiria a Terapia Kula e como ela se difere da maioria das formas de tratamento que comumente são praticadas por demais profissionais e clínicas?

A terapia Kula é um resgate, um movimento completo de sankofa.

Muito se fala sobre pegar o que ficou atrás, mas pouco se diz sobre manter presente o que pegou. Então, a terapia Kula é a sustentação de tudo que venho resgatando sobre a nossa ancestralidade, e esse se torna o diferencial. Todo problema trabalhado nas sessões, passam por esse caminho de entender como nossos antepassados lidavam com essas questões, afinal, quem acredita em Odú, sabe que nada do que passamos hoje é novo sob o Sol. As roupagens são diferentes, a forma de processar tem sido diferente, mas as situações na essência, são as mesmas. Então com isso, entendendo o que é a essência da situação e como podemos lidar de forma africana. E quando falo africana é pensando nas ferramentas ancestrais que temos.

Especificamente no que tange aos impactos do racismo incididos sobre a saúde mental de pessoas negras, poderia discorrer acerca da assertividade de uma abordagem como a Terapia Kula?

Tudo começa que o foco da terapia Kula não é o racismo.

Raramente falamos sobre ele, e entendemos muito mais sobre as dinâmicas que atravessam a nossa autonomia enquanto pessoa preta. Então sairmos de uma ideia de reação ao racismo, para uma ação independente dele. Óbvio que racismo é um fato, é algo que está presente em todas as relações que temos em algum nível, porém, o racismo não pode ser o definidor da subjetividade de uma pessoa preta, então colocamos o racismo a parte do tratamento psicológico é focamos em criar ferramentas para lidar com o mundo e não com o racismo.

A partir da Terapia Kula, como são tratadas questões como ancestralidade e construção da identidade para o bem-estar psicológico de pacientes das mais diferentes origens, gêneros, camadas sociais, idades etc.?


Bom, a terapia Kula possui dois conceitos bases para todos os atendimentos, responsabilidade e estratégia. A responsabilidade usamos como um suleador das questões que precisam ser trabalhadas, ou seja, mapeamos eu e o paciente, quais são as responsabilidades dele nos processos que lhe ocorrem, sejam bons ou ruins, sempre há uma porcentagem de responsabilidade e é com ela que trabalhamos, depois de mapear, criamos as estratégias para colocar as responsabilidades em prática. Essas estratégias passam por reflexões sobre o tempo na perspectiva africana, que é cíclico, passa por arquétipos de Orixás, como Exu, em que trabalhamos exatamente a noção de responsabilidade e encruzilhadas, buscamos trocar conceitos de palavras que possuem cargas emocionais ruins, tipo, a diferença entre independência e autonomia… E por aí vamos refletindo e relembrando a cada sessão, qual o jeito de lidar com a vida que faz sentido pro nosso Orí e nosso Okán.

E, em se tratando de ancestralidade, poderia , por gentileza, se aprofundar em temas como a transmissão intergeracional de traumas, uma certa conexão entre história e psicologia?

Existem muitos estudos que indicam uma relação direta entre genética e memória emocional/comportamental. E de fato, é algo que faz muito sentido com os estudos que temos também sobre ancestralidade. Muitos traumas que se reverberam no povo preto, ainda tem uma correlação com a era escravocrata, mas para mim, o que faz com que esses traumas ainda perpetuem em nós não é somente a genética, ou quão absurdas foram todas as violências que o nosso povo sofreu, mas sim o fato de não estarmos em casa. E quando eu falo casa, digo da terra Mãe, mas não somente, falo mentalmente e em espírito. Falo sobre estarmos em casa em nós mesmos. Em saber quem realmente somos, para que possamos manifestar toda nossa grandeza no mundo. Os traumas, ao meu ver, nada mais são do que um adoecimento provocado pela escassez de não sabermos quem somos. De termos esquecido. Biologicamente existem várias coisas que acontecem no nosso cérebro para que tenhamos um trauma no nosso inconsciente, mas olhando de uma forma ampla, que é o movimento que toda a espiritualidade africana faz, o que falta à mente é uma melhor conexão com o seu mais velho, o coração.

Sabia que o coração é o primeiro órgão formado numa gestão humana?

Ele é o mais velho e mais sábio do nosso corpo. Com meus estudos aprendi, que é nele que mora nosso espírito. E hoje vivemos em um mundo que está o tempo todo nos dizendo para não confiar nosso coração. Ou que confunde a voz do coração com a voz da mente emocionada e adoecida. Enfim, é um tema que é complexo, mas que ao mesmo tempo é simples quando entendemos que todas as coisas são cíclicas e prósperas, ou seja, possuem inúmeras caminhos mas que confluem com um só.

E quanto ao pertencimento – ou não pertencimento – religioso, em especial às religiões de matriz africana, mas não exclusivamente, como é a relação com o processo de tratamento da Terapia Kula?

Na entrevista inicial eu perguntou sobre a espiritualidade do paciente, para entender até que ponto consigo falar sobre, Esú, por exemplo, abertamente ou se precisarei falar somente do poder de Esú sem citar o seu nome. A intenção de termos uma terapia que fala sobre espiritualidade não é para converter pessoas, apesar que muitos adoecimentos que surgem na clínica vêm da visão de mundo cristã, mas o entendimento que espiritualidade nada mais é que uma ciência que que sabe falar de filosofia, de biologia, de química, de matemática, de nutrição. Ou seja, espiritualidade está em todas as coisas. Então uma das formas de falar sobre a religião de matriz africana com uma pessoa cristã é falar sobre a alimentação dela. Ou sobre como ela não lida bem com as suas próprias responsabilidades (Esú), ou como ela vive fazendo escolhas escassas e não se permitindo ser próspera (Osún). Agora, com quem já é de terreiro, muita coisa flui com mais facilidade. As palavras chegam com mais força, é falar de Ogum, que já entendemos qual foi o erro cometido naquela situação.

Quais os principais entraves que dificultam o acesso à terapias como a Kula e como você tem trabalhado no sentido de facilitar a chegada de pessoas para que possam cuidar de sua saúde mental?

Bom, acredito que é a formação de profissionais. Eu tenho mulheres que são próximas a mim que fazem trabalho parecido, mas são poucas. E percebo que há uma certa confusão também entre uma terapia racializada e uma terapia africana. A terapia africana raramente vai citar racismo como pauta. Ela parte do que vem beeeeem antes do racismo sequer existir. A chegada para a terapia Kula, graças a Orixá, acontece de forma bem fluída, e sempre que não tenho mais agenda indico para minhas outras parceiras, e pro futuro, penso em talvez dar algum curso sobre a base que consegui entender até aqui, para construção de uma Psicologia Africana.

Depressão, Ansiedade, Estresse Pós Traumático, TDAH, são patologias cada vez mais comum na contemporaneidade, dada nossa relação atual com dispositivos eletrônicos, telas, (des)informações nas mídias sociais entre outras causas. Você poderia explicar como um corpo de conhecimentos tão antigo, como os que embasam a Terapia Kula, pode ser cabível na atualidade, quiçá até mesmo se fazer necessário?

Como eu disse acima, nada que acontece hoje é novo sob o sol. Óbvio que nunca tivemos todas essas coisas em níveis tão alarmantes, mas o que faz termos frutos tão ruins é a raiz que estamos ligados, que é a visão de mundo ocidental. Então, se a raiz está podre, ou gera frutos ruins, o que precisamos fazer? Arrancá-las e arrumar melhores sementes. Ou buscar uma outra raiz que dê frutos melhores. Graças a Orixá, temos raízes pra onde voltar e acredito que é nela que conseguiremos lidar melhor com as patologias da contemporaneidade. Para isso, somente a psicologia não basta. Somos seres holísticos, feitos de inúmeras camadas, a psicologia da conta de algumas, mas não todas, as vezes o que a pessoa precisa é de um ebó, ou de uma melhor alimentação, mas também um melhor entendimento de como funciona o tempo do seu próprio corpo. Na terapia Kula avaliamos juntos o que é possível construir nas sessões e o que talvez vamos precisar de outras ajudas, inclusive, um que não curto muito, que são os remédios, mas que sempre reforço que precisa ser uma estratégia e não o modo de vida da pessoa. Então sim, os conhecimentos antigos se fazem mais que necessário para lidar com essas questões porque as pessoas que promovem essas patologias, são os mesmo que fabricam os seus remédios.

Existe alguma restrição ou alguma situação em que a Terapia Kula não é recomendável?

Talvez uma pessoa que busca uma terapia racializada, ou seja, uma pessoa preta fazendo uma psicologia empretecida.

Para você, Thandiwe Mawakana, quais foram os principais desafios na concepção da Terapia Kula e para seu lançamento para o público?

Acho que a parte operacional, de colocar limites pra mim mesma sobre quantos pacientes eu iria atender, sobre meus dias de folga. O lançamento foi tranquilo, na época, como se fosse muito longe (risos), mas a sensação é que é realmente outra época porque foi um ano antes da pandemia. Mas, na época eu colei cartazes pelo centro de BH e espaços culturais que eu sabia que circulava pessoas pretas, dizendo que eu estava fazendo uma terapia somente para pessoas pretas. Acho que quando comecei, tinha poucas pessoas fazendo esse movimento, principalmente de atender somente pessoas negras. Creio eu que isso chamou atenção das pessoas e dali em diante só fluiu.

Para que mais pessoas tenham a possibilidade de cuidarem da saúde mental de acordo com princípios como da Terapia Kula, que ações você tem feito no sentido da propagação destes saberes e do acesso a eles?

No momento, eu escrevo alguns textos e publico no Instagram. Mas não sou muito fã de uma propagação maior pelo Instagram, por exemplo, porque acho que de alguma forma coloca a terapia Kula como algo para todos, e eu acredito que a terapia Kula em específico é para algumas pessoas, porque temos outras terapias, como a Mpemba, a Afefé, a Quilombo Psi. Então a Terapia Kula em si não, mas os princípios, eu tenho pensado em fazer um curso sobre eles para psicólogos pretos. Um dos meus sonhos é poder dar aula, então acredito que seria uma ótima oportunidade. Mas ainda estou construindo isso, porque esse ano estou fazendo uma pós em neuro, também para ajudar na construção desse curso.

Para você, enquanto psicóloga, que tipos de ações você acredita que poderiam ser feitas por parte do Estado, das escolas, das empresas, clínicas entre outras instituições poderiam ser feitas no sentido da difusão de tratamentos como a Terapia Kula e como isto pode refletir positivamente em nossa sociedade?

Sendo bem sincera, pelo Estado, escolas, empresas e clínicas, eu acredito que nenhuma. Ao meu ver e do pouco que venho aprendendo em todos meus estudos e reflexões, essas mudanças precisam acontecer de dentro para fora, ou seja, do povo para o povo. Todas essas instituições partem de uma visão de mundo, e essa visão, hoje, ainda, é branca. Não há como fazer uma Terapia Africana dentro de uma instituição branca. Agora, se a gente tá falando de professores pretos, se a gente tá falando de empresários pretos, de psicólogos pretos, o caminho é estudar sobre a cosmopercepção de mundo e aplicá-la o máximo possível. Separar muito bem o que nosso mais velho John Henrik Clark ensina, o que é estratégia e do que é modo de vida.

A partir do seu histórico profissional, quais os principais pontos em que você observou melhorias na qualidade de vida das pessoas que atendeu? Cite-nos, por gentileza, mesmo que superficialmente, alguns casos de sucesso.

Bom, com certeza, uma conexão maior com a ancestralidade, um amadurecimento, e uma sensibilidade maior para diferir as próprias responsabilidades, das responsabilidades dos outros. Tive uma paciente que parou de entrar num lugar de salvação dos pais, e hoje passou a entendê-los como pessoas que possuem seu próprio Orí. Isso fez com que ela tivesse menos crises de ansiedade. Tive outra paciente que saiu de um lugar de ser escolhida pela empresa, para um lugar de escolha, e ganhou mais autoestima e autonomia no trabalho. Pacientes que começaram a lidar com os afetos de uma forma adolescente para uma forma adulta e isso acarretou mais energia e saúde mental, mais autonomia e mais autosabedoria. Uma paciente que saiu de uma depressão severa para uma depressão leve, com pouca crise de ansiedade. E tive algumas pacientes que chegaram com sintomas iniciais de burnout, mas que com os atendimentos e estratégias que fomos criando, algumas chegaram a tomar remédio, outras não precisaram, o burnout não se desenvolveu. Muitas ressignificações de relações familiares, relações com o trabalho. É isso. Não sei se são casos de sucesso (risos), mas vejo como casos bem prósperos. Não só um espaço de cura, mas um espaço de criar autonomia para autocura.

Para quem quiser conhecer mais a respeito da Terapia Kula, por favor, quais os contatos? 

Meu Instagram é @terapiakula

Por fim, para conhecermos um pouco mais a respeito da especialista em Terapia Kula, Thandiwe Mawakana, suas preferências e gostos, pedimos que deixe algumas indicações de livros, músicas, filmes, podcasts, vídeos, peças teatrais ou o que desejar daquela dica cultural!

Massa!! Livros preferidos da vida: O espírito da Intimidade, Sobonfu Somé, O livro Africano sem título, Dr Fu Kiau, Amkoullel, o menino Fula – Amador Hampat; Marcus Garvey – Procure por mim na tempestade; Exu e a ordem do universo – Sikirú Sàlámi (King).

Documentários: a 13 emenda, e a revolução do Haiti. Um podcast, seria o Kemetcast… acho que são esses.


Agradecemos muito pela atenção concedida pelo Thandiwe Mawakana para esta entrevista.

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