É com o coração transbordante de significado que abraçamos este tema – o câncer de mama em mulheres negras -, tão profundamente especial e próximo da própria história de muitas mulheres, mães, tias, avós, irmã, primas, amigas… Mais do que uma entrevista, este é um reencontro muitas histórias de luta, uma conversa que entrelaça dores, resistências e a força ancestral que nos move.
O Instituto Itéramãxe, parceiro, cuja caminhada se entrelaça com a nossa em propósito e esperança, ao sugerir a realização entrevista com Keila Candido, honra Instituto Axé! E, que a partir desta sugestão, que nossas vozes, unidas, possam ecoar faróis de acolhimento e transformação.
Keila, como sempre por aqui, nossa conversa se inicia com uma auto-apresentação da pessoa que está sendo entrevistada. Poderia, por gentileza, poderia se apresentar, nos contar um pouco sobre a sua trajetória pessoal?
Meu nome é Keila Maria Candido, integrante do Candomblé, advogada, funcionária pública aposentada, 64 anos, negra retinta, militante do movimento negro desde os 14 anos. Mãe solo da chef de cozinha Dany Lúcio.



Atualmente, você encabeça ações de pesquisa e conscientização sobre o câncer de mama com recorte racial, certo? Um estudo publicado em abril de 2024 pela revista científica “Breast Cancer Research and Treatment” aponta que o câncer de mama tem maior incidência em mulheres brancas do que negras. Entretanto, mulheres negras recebem o diagnóstico mais tardiamente, ou seja, a doença já progrediu mais. Além disso, o índice de mortalidade de mulheres negras é o triplo do que as mulheres brancas. Como foi que você descobiu que estava com a doença? E, na sua experiência ou conhecimento no convívio com outras mulheres, quais são os caminhos mais comuns (e muitas vezes inesperados) que levam as mulheres ao diagnóstico?
Descobri através do exame de toque nas próprias mamas, confirmado pela mamografia.
Poderia descrever como foi o momento em que você recebeu o diagnóstico de câncer de mama?
Não foi uma surpresa, devido ao conhecimento que eu possuía sobre o assunto.
A surpresa foi saber a progressão e o tamanho do tumor.
Eu me dei conta de que fazia parte das mulheres que, embora conscientes da doença, tinham outras prioridades no momento que necessitavam de sua atenção, então você coloca a própria saúde em segundo plano.
Em 2023, o Datafolha indicou que 61% das mulheres negras possuem dificuldades para obter informações sobre câncer de mama, em contraposição à 20% das mulheres brancas. Isto indica a premente necessidade de um trabalho de conscientização como que você tem realizado. Você poderia, por gentileza, nos contar um pouco a respeito das ações que têm sido realizadas a fim de difundir informações acerca do câncer de mama?
Eu me formei em Direito e atuei como advogada por pouco tempo. Minha carreira profissional se fez com projetos sociais, em especial nas ações de políticas afirmativas étnico-raciais – Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social em São Carlos. Se as estatísticas apontam que a desinformação, o diagnóstico tardio e a morte têm incidência maior na mulher negra de maior vulnerabilidade, esta Secretaria tem um papel fundamental para difundir tais informações, além da Secretaria de Saúde, que por vezes fica engessada nos atendimentos das UBS.
Quais métodos ou atividades específicas (eventos, mídias sociais, palestras, etc.) você considera mais eficazes para que informações sobre o câncer de mama cheguem às mulheres negras?
Acredito muito nas ações dos CRAS e dos Centros de Convivência. Por estarem instalados em bairros periféricos, nessas unidades há uma grande circulação de pessoas, em especial de mulheres negras. Os anseios vão desde uma cesta básica até cursos e entretenimento.
Rodas de conversa, filmes e palestras nesses espaços farão a diferença.
Quais são os maiores desafios que ao tentar comunicar a importância da mamografia e do autoexame para mulheres negras?
A identificação: eu tenho que me ver no outro, tenho que me enxergar, tenho que me sentir acolhida. Ainda hoje, a palavra “câncer” é sinônimo de morte. A maioria dos(as) palestrantes são brancas de classe média alta.
No âmbito social, alguns fatores como não ter uma ampla rede de apoio; ser arrimo de família; ser mãe-solo; entre outros exemplos certamente podem impactar no devido tratamento da doença. Como isto vem sendo discutido no seu trabalho, e o que tem sido proposto neste sentido?
São esses fatores que julgo importante a integração da Assistência Social. Ter um diagnóstico de como vive essa mulher com câncer e de suas dificuldades pode ajudar a suprir, e muito, suas carências. Muito se fala em rede de apoio. As perguntas a serem feitas são: quais são as redes de apoio? Elas são iguais para todas as pacientes? Elas têm informações jurídicas sobre uma aposentadoria, por exemplo?
Exemplo: ao invés de pegar o remédio no postinho, a própria unidade oncológica poderia fornecer. Tudo facilitaria…
Como parceiros(as), familiares e amigos(as) podem acompanhar o tratamento junto à paciente? Evidentemente, não é possível falar que todas as pessoas sintam-se melhor acompanhadas da mesma maneira. Mas, a partir da sua perspectiva, o que você destacaria?
Aqui no município de São Carlos é permitido o acompanhante. O acompanhante, assim como a família, tem que ser qualificado e ter ciência do estado em que se encontra o paciente. O afeto, as limitações e as mudanças estéticas fazem parte do tratamento.
Qual foi a importância do acompanhamento psicológico ou de grupos de apoio durante o tratamento? Que tipo de suporte emocional você considera essencial e que nem sempre está disponível para mulheres negras pacientes da oncologia?
É importantíssimo, ainda mais para nós, mulheres negras, que temos um histórico de racismo e exclusão desde sempre. A autoestima é fundamental. Nós, mulheres negras, somos mais versáteis quanto ao nosso cabelo e turbantes em relação a outras etnias, por exemplo. No entanto, quando acometidas pelo câncer e ficamos carecas, pouco utilizamos essa ferramenta. Profissionais da Psicologia da etnia negra seriam, penso eu, o diferencial.



Como você avalia o papel da saúde pública (SUS, hospitais públicos) no acesso ao diagnóstico, tratamento e, principalmente, ao suporte psicossocial para todas as mulheres, independentemente da sua condição social?
O SUS, na minha opinião, é fantástico. Porém, há necessidade de ajustes, de qualificação, de aprimoramento. Afinal, há pouco saímos de um estado de escravização e ainda estamos vivendo as consequências desse regime.
Além dos exames clínicos, como a conscientização sobre o câncer de mama pode motivar mudanças no estilo de vida (alimentação, exercícios, por exemplo) e na saúde mental, como forma de prevenção ou diminuição de riscos?
Sim, por isso a importância deste tema ser debatido nos CRAS e Centros de Convivência, pois lá são oferecidas, de forma gratuita, tais atividades.
A mastectomia é uma cirurgia que afeta profundamente a imagem corporal e, com isso, geralmente a autoestima também. Como você e outras mulheres do seu trabalho lidam com essa transformação e qual o papel do apoio social nesse processo de aceitação?
Não é fácil: o olhar no espelho, o se aceitar, o olhar nesta nova perspectiva é complicado.
Eu, particularmente, sempre tive seios grandes e adorava decote; era a parte do meu corpo de que mais gostava. De repente, não tem mais…
Então tive que me reinventar. Ainda estou nesse processo. Três suportes estão sendo importantíssimos neste meu processo: a família, a psicóloga e o amigo.
Quais são os planos futuros deste trabalho? Além de sua atuação frente ao poder público de sua região, há planos para expandir para outros tipos de ações, ou realização de outras ações que dialogam com outros recortes de gênero, classes sociais, ou mesmo homens (cerca de 1% dos casos de câncer de mama são em pessoas cujo sexo biológico é masculino)?
O plano é que dê certo. Estamos no início ainda, há muito que caminhar… Tem um ditado africano que diz:
“Se quer ir rápido, vá sozinho; se quer ir longe, vá acompanhado.”
Qual a importância de compartilhar histórias de mulheres que enfrentaram o câncer de mama? De que forma essas narrativas contribuem para a conscientização e para a esperança de outras pessoas?
Quanto mais soubermos de nós mesmos, mais soluções encontraremos para, se não erradicar, amenizar o efeito da doença na vida social dessas mulheres. As narrativas são histórias reais; nos identificamos com elas, nelas nos fortalecemos, nos aquilombamos.
Se pudesse dar um conselho a alguém que está começando um trabalho de conscientização semelhante, qual seria a lição mais importante que você aprendeu?
Não estamos sozinhos. Há alguém em algum lugar fazendo o mesmo que você…
Não romantize o câncer de mama. A vida só segue porque você existe.



Keila, para quem quiser conhecer mais a respeito do seu trabalho de conscientização e prevenção contra o câncer de mama em mulheres negras, como é possível te contactar?
Podem me enviar emails para [email protected]
Por fim, Keila, a última questão é para conhecermos um pouco mais sobre você, seu gostos, preferências, etc. Por favor, deixe aqui, indicações de livros, séries, músicas, podcasts, filmes, peças, o que você quiser!
Gosto de ler, 3 sugestões:
- Cotas Raciais (Lívia Sant’anna Vaz);
- O Pacto da Branquitude (Cida Bento);
- Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial (CEERT).
Música: Djavan, Emílio Santiago, Alcione, Cartola, Ana Carolina (sou extremamente romântica).
Bebida: Vinho semi seco.
Esporte: Futebol, atletismo, vôlei e basquete.
Agradecemos muito pela atenção concedida pela Keila Candido para esta entrevista.
Agradecemos muito pela sugestão de entrevista feita pelo Instituto Itéramãxe.